O Marchador, antes de se transformar em Mangalarga, era um desbravador dos sertões. E assim foi desde o início da sua história, que começou no ciclo do ouro, do sangue e das lutas armadas pela posse das riquezas escondidas no solo de Minas Gerais.
Na guerra das Emboabas, quando paulistas e portugueses cruzaram armas pelo domínio das minas no interior, um bom cavalo Marchador valia uma libra de ouro apurado - paga pelo conforto do seu andamento, velocidade do seu galope e confiança no seu brio.
Depois do barulho da guerra, a terra disputada começou a devolver, com riquezas outras, a quem nela trabalhasse, sem que lhe adubasse com sangue. Com a força do café, arroz, milho, feijão, cana-de-açúcar, bovinos e eqüinos, Minas começou a crescer.
O cavalo Marchador tornou-se ainda mais indispensável na abertura dessas terras montanhosas, sem estradas, pontes, ferrovias - e sem, ao menos, um rio navegável para ligar a nova província ao litoral. O Marchador era o companheiro inseparável do fazendeiro no seu trabalho no campo e nas suas viagens pelo interior - principalmente quando tinha negócios a tratar no mercado da comarca, em Ouro Preto, no porto, ou na corte do Príncipe Regente, na cidade do Rio de Janeiro. Nesta época, o raiar do século XIX, começou-se no Sul de Minas, a selecioná-lo como raça.
Em casa, na fazenda, o Marchador era o cavalo predileto, pela segurança do seu andamento, para a lida do gado, nos pastos altos das serras que caracterizam Minas Gerais. Nos dias Santos, com sela, cabeçada e rédeas de níquel ou prata, era o cavalo escolhido para acompanhar a procissão em homenagem à padroeira da cidade.
Aos domingos, a parentada e os amigos reuniam-se cedo no terreiro, com Mangalarga Marchador e farejador paulista, para mais uma caçada ao veado campeiro, esporte preferido por essa gente das geraes. Achado o rastro, avistada a caça, começava o tropel pelas chapadas, cruzando encostas das grotas, cortando cristas das serras, pelas veredas dos vales, através dos capões das matas; saltando pau, pedra e riacho. Mangalarga Marchador e veado campeiro - num duelo de agilidade, velocidade e resistência animal.
Vencida a caça voltavam, os cavaleiros, de rédeas frouxas e marchas suaves, os longos quilômetros percorridos a galope.
Mal sabiam eles, cavalos e cavaleiros perdidos no longínquo sertão mineiro, a revolução que iria causar um dia estes andamentos marchados.
Breve História do Cavalo Mangalarga Marchador Os primeiros matungos a chegarem em terras do Sul de Minas não eram, certamente, marchadores. Quando a região foi desbravada para a agricultura e a pecuária, no século 18, depois da dramática fase da mineração, o homem das Geraes não estava à procura de um cavalo cômodo de sela. Passado o ‘polígono do ouro e do sangue’ o faiscador, cansado de esperar pelo acaso, guardou a bateia e entregou-se ao cultivo da terra. E precisava, para esta nova empreitada, de um companheiro de trabalho dócil, forte e disposto a carregar o fardo da abertura de um ‘novo mundo’ para a lavoura e o pasto. Foi se acumulando na região uma cavalhada rústica de serviço -, os machos utilizados para o trabalho e as fêmeas para produzirem burros. Inevitavelmente, em razão da sua origem ibérica, havia entre eles, como numa bateia de cascalho aurífero, alguns granetes de ouro - um ou outro animal marchador.
E a Capitania das Minas Geraes, fechada nas suas montanhas, foi prosperando. Como produtor agropecuário tornou-se, com o tempo, um dos sustentáculos da economia rural brasileira.
Mas, apesar da sua crescente opulência, o povo sul mineiro era isolado -, sem vias naturais de acesso. Não havia rio navegável para servir de ligação entre o interior e as cidades do litoral. Nenhuma ferrovia que o ligasse à capital, Ouro Preto, ou à sede do governo Imperial, o Rio de Janeiro. As companhias inglesas ainda não estavam dispostas a financiar uma ferrovia de dimensões faraônicas, capaz de superar os obstáculos impostos pela majestosa Serra da Mantiqueira, englobando uma região maior do que própria Inglaterra. O único meio de transporte viável, capaz de vencer as precárias estradas das serras, surradas pelas chuvas e desfiguradas pelos deslizamentos, era a tropa de burros e cavalos.
É neste contexto histórico que podemos começar a vislumbrar a preferência dos habitantes destas terras por um cavalo forte, ágil... e marchador.
Imagine o sucesso de um bom cavalo de marcha para o ‘novo’ homem das Geraes que, agora fazendeiro abastado, dependia exclusivamente do cavalo para se locomover dentro e fora da região serrana. Ora para fiscalizar as suas extensas lavouras, ora para ‘agir’ os seus negócios na sede da comarca, freqüentemente para resolver problemas forenses na capital da Província, Ouro Preto, e eventualmente saldar compromissos na capital do Império, a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.
Só dispondo de um meio de transporte – o lombo do burro ou do cavalo – não é difícil se imaginar o fazendeiro rico a pagar uma ‘fortuna’ por um bom cavalo marchador.
‘A preocupação era conseguir cavalos bons de sela, cômodos, mas ligeiros, cavalos prontos. Nessa época, José Frausino adquiriu um potro, chamado Fortuna, em alusão ao alto preço pago por ele. Há versões que nos contam que o preço pago pelo cavalo teria sido de 150$000. Outros informam que havia uma troca por 40 novilhas’. (R. Bortoni). Ao preço de 10 mil dólares, em 1828, não é por mero ‘acaso’ o primeiro marchador a ser mencionado na História da raça chamar-se ‘Fortuna’.
O Mangalarga Marchador, surgiu no Sul de Minas, como uma necessidade do patrão. Formou-se, como raça, pela mão dos patriarcas de uma sociedade essencialmente eqüestre - um dado histórico importante, para a compreensão do sucesso deste cavalo - que se tornou a primeira raça brasileira verdadeiramente nacional.
O Cavalo Alter Real Não se faz raça sem raça. Emílio Solanet atribuiu a origem do Mangalarga Marchador ao Andaluz. Já, D.B. Ribeiro, A. Cabrera, e Guilherme Hermsdorff apresentam o cavalo Alter Real como básico na formação da raça. Estas posições não são hipologicamente conflitantes, pois o Alter Real é de origem Andaluza. Em minhas pesquisas étnicas realizadas na Coudelaria Real em Alter do Chão foi possível comprovar a ascendência genética do MM com o Alter Real, como divulguei no livro Os Cavalos da Vila Quixote. No início do século 19, o Mangalarga Marchador era feio se comparado às raças tradicionais do velho mundo - Andaluz, Lusitano, Puro Sangue Inglês e Árabe. ‘De cabeça um tanto pesada, com resquício de subconvexidade, pescoço curto e de inserção baixa, garupa um tanto inclinada.’(R. Bortoni).
E o Mangalarga Marchador, feio mas útil, como o sapo na História da carochinha, ficou a esperar o seu ‘príncipe encantado’ para completar a sua metamorfose e transformar-se num belo cavalo de raça.
O Príncipe chegou, um dia, melhor do que a encomenda -, na forma de um Imperador - o Imperador D. Pedro II. ‘Conta a tradição que um prestigiado fazendeiro do Sul de Minas - Gabriel Francisco Junqueira, o Barão de Alfenas - recebeu do Imperador do Brasil um garanhão da raça Alter Real. O cruzamento deste cavalo com éguas selecionadas em sua fazenda Campo Alegre, deu início à raça Mangalarga Marchador”. (A História do Cavalo Mangalarga Marchador, ABCCMM).
A história de que D.Pedro presenteara o Barão de Alfenas com um garanhão Alter Real contem uma semente da verdade: a fusão dos primeiros animais marchadores com sangue Alter, através da Coudelaria Cachoeira do Campo, fundada por D. João VI, na comarca de Cachoeira do Campo em Minas Gerais realmente aconteceu. Vejamos o que diz a História oficial: ‘Por carta régia de 29 de julho de 1819, manda-se criar em Cachoeira do Campo, próximo a Ouro Preto, nos pastos do antigo quartel do Regimento de Dragões, o ‘Estabelecimento das Manadas Reais da Capitania de Minas’ - a Coudelaria Real de Cachoeira do Campo, destinada à seleção e melhoramento das raças cavalares. Dos cruzamentos das raças importadas valem-se muito os criadores mineiros. Sobretudo com aqueles estabelecidos na comarca do Rio das Mortes, centro criador de alto nível desta colônia. A iniciativa de constituição de um campo de experimentação e melhoramento do cavalo encontra, em Minas Gerais, na primeira metade do século 19, fortes adeptos entre os criadores e proprietários sul mineiros. A experiência da Coudelaria Cachoeira do Campo é reveladora e de grande expressão na História do Mangalarga Marchador”.
É natural que D. João VI tenha se preocupado em fundar uma Coudelaria para o melhoramento de cavalos no Brasil. Luccock, viajante inglês, descreve com horror a escolta que de início acompanhava em seus passeios a traquitana de Dom João, que era composta de soldados montados em cavalos sem ferraduras, muitos mancos, cegos de um olho ou chaguentos. Afinal, a Casa Ducal de Bragança, agora sediada no Rio de Janeiro, era a única corte européia nas Américas e precisava de cavalos de qualidade para se fazer representar com dignidade ao povo e aos embaixadores e emissários estrangeiros que visitavam o Reino Unido do Brasil, Portugal e Algarves.
Mas a raça Alter Real não trouxe a marcha para o Mangalarga Marchador, nem a sua ‘fusão’ com as éguas nativas resultou na marcha. O cavalo marchador existia na Europa à época da descoberta das América e chegou ao Brasil com os colonizadores portugueses - e no Sul de Minas já era objetivo de seleção dos fazendeiros, antes da chegada de D. João VI ao Brasil. O sangue Alter contribuiu, com as suas notáveis qualidades de conformação: o diagrama próximo do Andaluz, cabeça refinada com olhos bem separados, pescoço levemente arqueado, espádua longa, grande profundidade torácica, garupa musculosa e pernas particularmente fortes e de boa ossatura; isto, além de uma inteligência e vivacidade característica dos grandes cavalos de sela. O Alter Real representou a melhora da conformação necessária para a transformação do cavalo mestiço, em cavalo de raça. A raça Alter Real deu ao Mangalarga Marchador moderno o toque de ‘nobreza’ para que a raça fosse digna do dignitário e abriu-lhe a porta para a corte Imperial do Rio de Janeiro.
A Coudelaria Real de Alter do Chão A seleção do cavalo Alter Real em Portugal foi iniciada em 1748, por ordem régia de D. João V, em Vila Portel. na província portuguesa do Alentejo. O criatório foi transferido para Alter do Chão, em Portoalegre no ano de 1756. A criação foi iniciada com 300 éguas Andaluzes, selecionadas em Jerez de la Frontera, o centro de reprodução eqüina mais importante da Espanha. A Coudelaria Real Alter do Chão se tornou tão bem sucedida que passou a fornecer seus animais para o Manège Real de Lisboa, para apresentações de Alta escola, semelhantes às da Escola Espanhola de Viena. A raça foi também incorporada à corte inglesa - e o Alter Real é hoje uma das raças utilizadas pela Sua Majestade a Rainha Elizabete II, nas cerimônias oficiais da Grã-Bretanha. Como indica o nome, o Alter Real foi desenvolvido para apresentar a realeza numa moldura heróica - e o seu espírito nobre e elegante é perfeito para a refinada arte da equitação clássica.
Mas, no início do século 19, houve um desastre no glorioso percurso da raça: na “crise de 1807”, que terminou com a invasão de Portugal por Napoleão, a Coudelaria Real de Alter do Chão foi saqueada pelas tropas de Napoleão e muitos dos animais foram roubados e outros ‘desapareceram’. Mas o Príncipe Real (D. João VI), ‘ao prover a segurança e a preservação da sua pessoa e da Família Real, ’ como definiu o Marquês de Pombal, mandou vir para o Brasil, entre os seus mais valiosos tesouros, suas alfaias, baixelas, quadros, jóias, e biblioteca, alguns exemplares dos principais reprodutores e reprodutrizes da raça. Bom cavaleiro e entusiasmado caçador, é certo que o Príncipe não entregou de mão beijada ao ‘Corso’ todos os seus preciosos animais e que, a exemplo da raça Lipizzaner que se refugiou na Hungria em 1805, pôs a salvo no Brasil, a sua família, a sua honra, e alguns dos seus magníficos cavalos e éguas Alter Real.
Entretanto, em 1834, a Coudelaria Real Alter do Chão acabou sendo desativada, mas no final do século a Rainha Maria Pia reorganizou o criatório, introduzindo sangue inglês, normando, hanoveriano e principalmente o Árabe. Essas fusões foram mal sucedidas e a raça praticamente arruinada. (Foram preservados desta degradação genética os animais vindos para o Brasil, com a transferência da corte para o Rio de Janeiro em 1808).
Em 1932, o Ministério da Economia do regime Republicano de Portugal, reativou a Coudelaria e reintroduziu o sangue Andaluz original. O resultado foi o ressurgimento do cavalo Alter Real de alta qualidade e hoje mundialmente prestigiado como um atleta particularmente vocacionado para as performances eqüestres. Quando visitei a Coudelaria, em 1998, durante os festejos de seus 250 anos, o governo português havia feito grandes investimentos na área zootécnica e na recuperação do centenário estabelecimento.
Alter Real - ficha zootécnica: Altura: entre 1.50m e l.60m; pelagem: predominantemente castanha; conformação: a impressão geral é a do cavalo Andaluz. A cabeça é nobre e refinada, com olhos espaçados, perfil reto ou ligeiramente convexo; o pescoço arqueado, boa angulação de espádua, o corpo curto e o tórax profundo, a garupa musculosa e forte, cauda e crina abundante, pernas sólidas e com boa ossatura e tendões fortes. A raça é muito inteligente, corajosa e de grande agilidade. O temperamento é vivaz, a índole boa. São animais ótimos para qualquer disciplina eqüestre, mas são especialmente conhecidos como cavalos de Alta Escola.
MM no Século 19 – o Apogeu Estamos chegando à última década do século 19, o apogeu do cavalo e da cultura eqüestre em todo o mundo civilizado. O general L’Hotte, o melhor equitador da França, é écuyer-en-chef – mestre equitador – da Escola de Cavalaria de Saumur; o Capitão Caprilli, o principal modernizador da equitação clássica, desenvolve o ‘assento adiantado’ na escola de Cavalaria de Pinnerollo, na Itália; O ‘venerável’ Imperador Franz Joseph promove reprises eqüestres inesquecíveis na Escola Espanhola de Viena. A Inglaterra, com a morte da rainha Vitória e a ascensão de Eduardo VII, entra numa roda-viva de pompa e circunstância eqüestre, com grandes desfiles de cavalaria nas cerimônias de coroação do seu monarca. E, enquanto isso, na nova República do Brasil, o Generalíssimo Manuel Deodoro da Fonseca governa, e o cavalo marchador, já conhecido com o nome Mangalarga, tem grande prestígio, principalmente, no eixo econômico Rio/Minas.
Período efervescente este, do final do século. A política do “café-com-leite” domina o cenário político Nacional; Antônio Conselheiro prega nos sertões; Machado de Assis escreve um dos seus grandes contos, Quincas Borba, e assume como o 1o Presidente da Academia Brasileira de Letras; Ruy Barbosa redige a 1 a constituição da República; o genial Santos Dumont experimenta, em Paris, o seu ‘mais pesado do que o ar’, o Dumont 1 (precursor do famoso “14 Bis”), e cai de uma altura de 400 metros, mas sobrevive; Vital Brasil inventa um soro contra o veneno de cobra: Floriano Peixoto assume o Governo, sufoca a Revolta da Armada, salva a nova República, e ganha do povo o cognome “Marechal de Ferro”.
Nestes dias também nascem, na Fazenda Campo Lindo e na Fazenda Angahy, no sul de Minas, dois reprodutores que representam, a ‘Belle Epóque’ da raça Mangalarga Marchador: Caxias I e Bellini JB. E o cavalo Mangalarga Marchador é o ‘Lear Jet’ do ‘Jet Set’ da época, sendo muito admirado por onde passa, com sua postura altiva e seu andamento ‘aveludado’.
Mas, ainda na aurora do novo século, a lavoura e a pecuária começam a não ser mais a fonte de preocupações maiores do Estado, como já havia deixado de ser a mineração do ouro e das pedras preciosas no início do século anterior.
Quando Ruy Barbosa chama Juiz de Fora entusiasticamente de ‘Manchester Brasileira’, está decretado o fim de uma era. As estradas de ferro estão finalmente cruzando as Geraes; a nova capital do agora Estado de Minas, chamada de Belo Horizonte, está diretamente ligada ao Rio de Janeiro, por via férrea.
Minas Gerais ingressa na era industrial, e com a fuga do capital e dos recursos humanos do interior para os grandes centros urbanos do Estado, começa o empobrecimento da sua economia rural.
Depois de algumas dezenas de anos do novo século só restaram, como testemunhos do vigoroso ciclo agropecuário mineiro e fluminense, os solares e as casas-grandes decadentes, os terreiros e as tulhas de café em escombros e as palmeiras imperiais respeitosamente guardando as entradas das fazendas - os últimos vestígios dos barões e dignitários extintos como os dinossauros da face da terra.
Sobreviveu, porém, nas montanhas do sul do Estado, uma testemunha viva – o Mangalarga Marchador – um patrimônio genético que teria ainda, um dia, mais um importante papel a exercer, no renascimento da economia rural do Estado de Minas Gerais, cinqüenta anos depois.
Alfenas, o Barão Desde o início do século 18 existem notícias esporádicas de cavalos marchadores em Minas Gerais. Mas a história da raça Mangalarga Marchador só começa a ganhar nomes, datas, e endereços, no final daquele século. O primeiro nome a aparecer na História é o de Gabriel Francisco Junqueira; a primeira data - a de seu nascimento em 1782 - e o primeiro endereço é o da Fazenda Campo Alegre, município de Encruzilhada, hoje Cruzília, no Sul de Minas, onde Gabriel nasceu.
Gabriel Francisco Junqueira (1782-1868) é filho de João Francisco Junqueira que, vindo de Portugal, se instala como fazendeiro na região da Comarca do Rio das Mortes. Em 1769, por concessão do Governador da Capitania de Minas, João Francisco recebe carta de sesmaria da Fazenda Campo Alegre – fazenda que, pelas mãos do seu filho Gabriel, será o centro de formação do Mangalarga Marchador.
A vida de Gabriel foi dedicada à fazenda, à política e ao Mangalarga Marchador. Na política, Gabriel foi Comendador, Deputado por Minas Gerais, e liderou em 1842, com sessenta anos de idade, uma rebelião de liberais para ‘livrar o regime (monarquista) da coação da oligarquia conservadora, a qual atraiçoava, em seu interesse, o País e o trono’ (mais ou menos o discurso do Lula cento e cinqüenta anos depois). Na província de Minas, o movimento conquistou adeptos que acabaram formando a coluna ‘Junqueira’, com a participação de mais de mil homens, entre eles, grandes fazendeiros e comerciantes. ‘Apesar das vitórias obtidas, o avanço do movimento é comprometido pelos erros e vacilações dos liberais (da turma do deixa-disso). Num processo inconseqüente de marchas e contramarchas, os insurgentes terminam por ver desgastadas seus recursos, cedendo, por fim, à reação governista.’ Ou seja, a coluna ‘Junqueira’ se rende na Vila de Baependí, é desbaratada e seus líderes presos. Mas Gabriel, numa demonstração de grande habilidade política, dote natural de seus conterrâneos mineiros, é anistiado e agraciado com o título de ‘Barão de Alfenas, ’ em 1866, seis anos depois. (Em política, como dizia Lorde Palmerston, não se tem amigos nem inimigos permanentes, só objetivos políticos permanentes - ponto para Gabriel).
Como criador de cavalos, o Barão de Alfenas se utiliza grandemente dos reprodutores cedidos pela Coudelaria Cachoeira do Campo - é natural que o seu prestígio político junto à corte (apesar do imbróglio de Baependí, que teve um final feliz) lhe desse acesso ao que de melhor havia no centro de melhoramento eqüino de Cachoeira do Campo.
Por isso o cavalo mais importante da Fazenda Campo Alegre não tem nome certo - é Sublime, talvez - e não era Mangalarga Marchador - era um reprodutor Alter Real, proveniente da Coudelaria Alter do Chão, do Alentejo, Portugal; é o cavalo que o Barão de Alfenas recebeu, segundo a tradição, das mãos do Imperador, Dom Pedro II. E com este reprodutor depurou o seu criatório de cavalos Marchadores.
A realidade mais provável deste fato é a de que o Barão de Alfenas - utilizou-se dos reprodutores da Coudelaria Cachoeira do Campo, como comprova um ofício com a sua assinatura, de 1861 - em que declara estar devolvendo um reprodutor à Coudelaria e mais alguns produtos, provavelmente, como pagamento de uso. E o povo de Encruzilhada vendo o belo garanhão Alter da Coudelaria na fazenda Campo Alegre, admira-se e comenta: “Ocês viram o cavalão que o sinhô Barão ganhô do Imperadô? Não? Então vão vê que formosura, etc e tal!” (Vox populi vox dei.). O Barão de Alfenas morreu em 1868 deixando para o Brasil a preciosa raça Mangalarga Marchador e para a sua filha Chiquinha um cavalo de estimação chamado Mangalarguinho.
Patriarcas e Genearcas O ‘Barão de Alfenas’ iniciou, além de uma nova raça de cavalos, uma linhagem de criadores que vararam os tempos e, num exemplo raro de hereditariedade na história da eqüinocultura brasileira, a família chegou aos dias de hoje criando cavalos. Os descendentes do Barão de Alfenas, e outros criadores, conseguiram, a despeito da desorganização havida na eqüinocultura, com a invenção do trem, do automóvel e outras formas de transporte, conservar a genética da marcha até o renascimento da eqüinocultura brasileira, que aconteceu no início na década de 70 e chegou ao auge em meados de 80. A seguir, vamos dar uma olhada nas primeiras fazendas criadoras da raça Mangalarga Marchador, e nos seus titulares, muitos em linha direta com o ‘Barão de Alfenas’. Campo Alegre - A Fazenda Campo Alegre, do Barão de Alfenas, tem uma importância crucial na história do Mangalarga Marchador. Além de ser o marco inicial da raça, forneceu também, com a ajuda dos reprodutores da Coudelaria Cachoeira do Campo, os primeiros reprodutores marchadores de tipo definido. Por desmembramento hereditário, criaram-se importantes novos criatórios, como Bongue, Cachoeira, Narciso e Cafundó. O sobrenome Junqueira também se desdobrou, por casamentos, em Andrade, Reis, Meirelles e Araújo, sobrenomes que formam a base dos criatórios Sul Mineiros até os dias de hoje. Da Fazenda Campo Alegre saíram parte dos animais que formaram o plantel Favacho – um sufixo que ainda exerce influência na raça.
Favacho - Fundada pelo irmão do ‘Barão de Alfenas’, João Francisco Junqueira, a Fazenda Favacho só impulsionou a criação de cavalos com seu neto, José Frausino Junqueira considerado, juntamente com seu tio, o ‘Barão’, o nome mais importante entre os ‘bandeirantes’ da raça. Foi José Frausino que comprou o reprodutor Fortuna, genearca que gerou os primeiros grandes sementais da raça: Gregório, Manco, Armistício (armistício da I Guerra Mundial?), Colorado (também formador da raça Mangalarga Paulista), Gesso, Radical e Candidato. José Frausino foi também um dos primeiros e mais famosos caçadores de veados da família Junqueira. Por esse hábito, os animais originários da Favacho caracterizam-se por serem fortes, resistentes, ágeis e de bom andamento marchado, uniformes na marcha batida. Quatro bons exemplos são os reprodutores Favacho Farol, Favacho RB, Zeus PFG e a reprodutriz Favacha Santiago. A fazenda Favacho está situada no município de Cruzília, no Sul de Minas.
Campo Lindo - Também situada no município de Cruzília, a Fazenda Campo Lindo é de 1870, e foi propriedade de José Frausino Junqueira, o ‘bandeirante’ da Favacho. Mas quem fez a fama de Campo Lindo foi o seu filho João Bráulio Fortes Junqueira, nas últimas décadas de 1800. Foi João Bráulio que criou o sufixo JB, importante e respeitado até os dias de hoje. O reprodutor que teve o maior impacto na reprodução da Fazenda Campo Lindo foi Bellini JB, que gerou sementais como Ouro Preto, Mozart, Clemenceau I. O semental Bolívar, também filho de Bellini, serviu na Engenho de Serra e Pegaso, Rádio e Canário foram reprodutores que tiveram grande influência na Fazenda Traituba. Outro reprodutor famoso, porém não da patrelinha direta de Bellini, foi sincero JB, pai entre outros de Charlatão JG.
Traituba – ‘A sua sede, também situada em Cruzília, foi construída por volta de 1827 com o objetivo de hospedar D. Pedro I. Mas devido aos acontecimentos políticos adversos, que marcaram o final do seu reinado, D. Pedro infelizmente não chegou a concretizar a sua visita a Traituba’ (ABCCMM). O Major José Frausino Fortes Junqueira, outro filho de Frausino (da Favacho), é considerado o consolidador do criatório Traituba que, por esta razão promove um grande intercâmbio genético com a Favacho. Do Major Frausino, os herdeiros da Traituba adquirem a paixão pelas caçadas, que determina o tipo de cavalo lá selecionado - animais com grandes qualidades funcionais – agilidade, resistência e comodidade. Pégaso, filho de Bellini, e mais Rádio e Canário, todos da mesma linhagem foram os expoentes da Traituba. Rádio conquistou, em 1943, o título de Campeão da Raça e de Marcha na Exposição de Lavras.
Angahy - A fazenda Angahy foi fundada por José Carlos Garcia Duarte, por volta de 1782. Mas foi o seu bisneto, Christiano dos Reis Meirelles que, cem anos depois, iniciou o criaitório com a marca “C”, conhecida por seus animais ‘marcantes e de destacada caracterização racial’. Um marco na História da Angahy foi o grande genearca Caxias I. Este extraordinário reprodutor, junto com Bellini JB da fazenda Campo Lindo, constitui os dois principais ramos sanguíneos do Sul de Minas. Caxias I nasceu em 1898, no ano do início do Governo de Campos Salles, e o auge do ‘ciclo do café’ na economia brasileira, e enriqueceu a raça Mangalarga Marchador com seus filhos Caxias II, Yanque, Caxias Alazão e Mangalarga II. Outros reprodutores do nível de Mozart, V-8 JF, Sátiro, Mineiro e Miron também ajudaram a fazer a fama da Angahy. A Fazenda Angahy é vizinha de cerca da Fazenda Campo Lindo (de João Bráulio Fortes Junqueira) tendo, portanto, o mesmo endereço - Cruzília.
Narciso - Desmembrado da fazenda Campo Alegre (do Barão de Alfenas), a Fazenda Narciso teve como primeiro proprietário Antonio Gabriel Junqueira, um dos filhos do ‘Barão de Alfenas’. Da Fazenda Narciso saíram importantes reprodutores, que tiveram grande influência na formacão da tropa Sul Mineira. Um deles, Abismo, é considerado um dos principais troncos da raça Mangalarga Marchador. Trovador, filho de Abismo, era afamado por sua refinada conformação e excelente andamento. Pretinho filho de Trovador, nascido em 1890, durante o Governo Provisório de Marechal Deodoro, é pai de The Money, por sua vez, pai do grande genearca Bellini JB. Abismo também foi pai de cana Verde, pai de Guera, e este pai do semental Caxias I. “Difícil encontrar palavras para traduzir tamanha importância deste criatório para a raça Mangalarga Marchador”, escreveu o hipólogo Sérgio Lima Beck.
Cafundó - A Fazenda Cafundó também é um desmembramento da fazenda Campo Alegre do ‘Barão de Alfenas.’ Seu primeiro proprietário foi Francisco Gabriel Junqueira, o ‘Chiquinho Cafundó’, foi o décimo filho do Barão. A Fazenda Cafundó, através do reprodutor Telegrama, deu início a uma das mais importantes linhas sanguíneas da raça Mangalarga Marchador. Nascido em 1867, durante o reino de D. Pedro II e um ano antes da morte do Barão de Alfenas, Telegrama era de pelagem tordilha, de ‘frente leve’ e de elegante e cômodo andamento. Telegrama foi pai de Apolo, o padreador chefe do criatório 53 (de José Frausino Junqueira Netto, filho de João Bráulio, da Campo Lindo). Apolo foi pai de Armistício JF (Favacho) e Armistício foi pai do grande Candidato, pai de Favacho (velho), que gerou Favacho RB. Este se destacou por ter gerado um grande número de Campeões Nacionais de Marcha. Da Fazenda Cafundó nasceu e saiu também o Coronel Severino Junqueira de Andrade, fundador em 1912, de um dos mais importantes criatórios da atualidade - a Tabatinga.
O Final do Século 20 – a Ressurreição O século 20 foi de altos e baixos para o cavalo Mangalarga Marchador. Nos primeiros cinqüenta anos foram fundados os principais criatórios tradicionais em atividade hoje, descendentes por laços de sangue ou amizade com os ‘bandeirantes’ da raça. A Abaíba em 1907, a Bela Cruz em 1948, a Herdade em 1935, Passa Tempo 1928 e em Tabatinga 1912. Foi também fundada a ABCCMM - Associação Brasileira dos Criadores do Cavalo Mangalarga Marchador em 1949, instituição que fomentou a expansão da raça por todo o país.
Inicialmente, o objetivo da Associação era somente reunir debaixo da mesma bandeira todos os criadores de cavalos marchadores do tipo Mangalarga. Foram anos bastante difíceis, considerando a desvalorização do cavalo como meio de transporte, diante da acachapante popularidade do automóvel. Na primeira gestão do primeiro presidente, Moacyr Resende, receberem registro apenas 199 animais. O segundo presidente, José Bolívar de Andrade recebeu na sua posse, em 1955, a ACCMRM com 355 animais registrados e entregou a administração para o terceiro presidente, Márcio de Andrade, com 657 animais. A raça Mangalarga Marchador só atingiu a marca dos 2 mil cavalos em 1966. Na década de 70 a raça chegou a 10 mil animais. Mas a grande arrancada se verificou nos anos 80 quando, a (agora) ABCCMM, Associação Brasileira dos Criadores do Cavalo Mangalarga Marchador, na gestão de Aristides Rache Ferreira, ultrapassou o Puro Sangue Inglês em número de animais e se tornou a maior raça de cavalos criadas no Brasil, com uma tropa totalizando 100 mil animais. Vale uma explicação para a explosão do Mangalarga Marchador e da eqüinocultura brasileira na década de 80.
A revolução industrial brasileira, tão desejada pelos governantes republicanos, começava, já nos anos sessenta, a mostrar a sua face perversa – a poluição ambiental, a favelização da periferia, o transito caótico, e o crime crescente nos grandes centros urbanos. Foi quando a sociedade desiludida começou a ter ‘saudades do luar do sertão’ e a procurar, no campo, um pouco de paz para o seu descanso e lazer. Com esta perspectiva urbana ficou montado o ‘cenário’ para o ressurgimento do cavalo na sociedade brasileira.
Donos de fazendas descobriram que suas propriedades podiam se tornar rentáveis com seleção genética de eqüinos, bovinos e outros empreendimentos rurais. Donos de sítios e seu filhos descobriram que o cavalo é o grande companheiro para o seu lazer de fim-de-semana. Em menos de 20 anos, só a criação de cavalos de raça devolveu para o campo o maior investimento de origem urbana desde que Cabral havia, inadvertidamente, batizado a República Federativa do Brasil de ‘Ilha de Vera Cruz.’
O século 20, apesar da adversidade inicial, deixou um saldo positivo para o Mangalarga Marchador, que se tornou a maior raça criada no Brasil, com criatórios em quase todos os Estados da Federação.
O século 21 será certamente conhecido na história da humanidade, como o século da ‘regeneração ambiental.’ Depois de séculos de guerra contra a natureza, que destruiu florestas, arrasou espécies inteiras de animais e plantas, matou rios e infestou a atmosfera –, o homem negocia um novo acordo ambiental a favor da natureza - um acordo de paz e convivência ecológica sustentada. E com o reconhecimento da grande biodiversidade do Pais, o ‘mato’ que, no tempo de Rui Barbosa era sinal de atraso, vai virando parâmetro de civilização e geração de riqueza em todos os países desenvolvidos do mundo.
E nesta ‘nova ordem’, o Mangalarga Marchador poderá se tornar, para todo o Brasil, o que foi para Minas Gerais no século 19 - o companheiro inseparável na maior aventura de todas - a aventura de viver.
Fonte:
http://www.desempenho.esp.br